Livro – Facetas da Responsabilização do Terceiro Setor Diante do Novo Tratamento Jurídico Dado às Parcerias Sociais
09/11/2021Aspectos Práticos e Interdisciplinares da Constituição da Empresa
14/10/2023Por Henrique von Ancken Erdmann Amoroso[1]
I – INTRODUÇÃO.
Como se sabe, todo empreendedor, seja ele um fornecedor de produtos ou prestador de serviços, tem como objetivo primordial o lucro. O lucro, dentre outros fatores, está intimamente ligado a uma clientela ativa.
E, para conquistar uma clientela e expandir os negócios, o empreendedor depende de estratégias de marketing e, não raro, também da aquisição de uma carteira de clientes de outra empresa, a qual está encerrando as suas atividades, em razão da sua perda de competitividade no mercado. É sobre esta hipótese que iremos tratar aqui nestas breves linhas.
O estudo que ora se apresenta tem como finalidade estabelecer as cautelas mínimas necessárias para a aquisição de uma carteira de clientes alheia, a fim de que o adquirente (empreendedor pessoa física ou jurídica), ao ampliar as suas atividades profissionais, não sofra prejuízos que ultrapassem os riscos do negócio em si.
Para tanto, apresentaremos as posturas e cuidados mínimos que o adquirente precisa ter, tanto nas fases pré-contratual e contratual, a fim de que a carteira adquirida seja lucrativa à sua atividade.
II – CAUTELAS PRÉ-CONTRATUAIS.
A primeira regra básica que um empreendedor precisa observar é: faça trato com gente séria. Infelizmente, é comum que o comprador, no seu ímpeto expansionista, não se atente e, ao contrário, se iluda com a “lábia” do vendedor que apresenta um “mundo maravilhoso da clientela” que, na verdade, não é bem assim.
E, num futuro contrato de compra de carteira de clientes (no juridiquês: “Cessão de Carteira de Clientes”), seja a clientela “B2B” (business-to-business) ou “B2C” (business-to-consumer) é fundamental que o futuro adquirente esteja atento na fase de tratativas antes de fechar o contrato, pois os riscos são inúmeros e precisam ser mitigados. Todo o cuidado é pouco e o comprador não pode “escorregar em uma casca de banana” e “comprar gato por lebre”. As cautelas devem ser as mesmas de como se estivesse adquirindo um bem imóvel, pois a clientela é um ativo sem o qual a empresa não prospera.
Além das trocas de informações e mensagens havidas entre as partes sobre o objeto a ser negociado, é preciso que o comprador investigue a situação jurídica e financeira do vendedor perante os órgãos públicos e privados, por meio de certidões fiscais, judiciais e de protestos, a fim de saber se ele possui pendências administrativas, bancárias, judiciais e protestos na praça onde atua.
III – CAUTELAS CONTRATUAIS.
Ultrapassada a fase de pré-contratual de tratativas e busca de certidões, ainda que estas estejam em boa ordem, é importante que o contrato de cessão contenha cláusulas que mitiguem riscos desnecessários e resguardem o adquirente de eventuais prejuízos.
E não se está aqui a ignorar que, no caso, estamos tratando de um contrato paritário, pois discutido por partes em posição econômica de igualdade (no caso empresários, seja individual ou sociedade), regido pelo Código Civil e primordialmente pela autonomia privada.
Aliás, na I Jornada de Direito Comercial consta o enunciado 21, segundo o qual “nos contratos empresariais, o dirigismo contratual deve ser mitigado, tendo em vista a simetria natural das relações interempresariais”.
Outro não é o entendimento do Colendo Superior Tribunal de Justiça a respeito, in verbis:
“Contratos empresariais não devem ser tratados da mesma forma que contratos cíveis em geral ou contratos de consumo. Nestes admite-se o dirigismo contratual. Naqueles devem prevalecer os princípios da autonomia da vontade e da força obrigatória das avenças. Direito Civil e Direito Empresarial, ainda que ramos do Direito Privado, submetem-se a regras e princípios próprios. O fato de o Código Civil de 2002 ter submetido os contratos cíveis e empresariais às mesmas regras gerais não significa que estes contratos sejam essencialmente iguais”(destaque nosso)[2].
Mesmo assim, o contrato em questão deve ser pautado pelos princípios da função social do contrato e boa-fé objetiva (arts. 421 e 422, do Código Civil), significando, nos dizeres do saudoso mestre Miguel Reale, “que o acordo de vontades não se verifique em detrimento da coletividade”[3].
Desta forma, é preciso fazer constar do contrato, ou em documento anexo ao instrumento, a lista dos clientes cedidos, com nome completo e os dados de contato.
Ato contínuo, como uma das obrigações contratuais, o vendedor (Cedente da carteira) precisa entregar ao comprador (Cessionário) o histórico de vendas de cada cliente, a fim de entender o perfil de cada um e, assim, vender corretamente o que e para quem.
Em verdade, quem está vendendo (cedendo) a carteira deve descrever detalhadamente, por meio de documentos e/ou planilhas, os produtos/serviços que fornece a cada cliente, qual a frequência e os principais integrantes da lista.
Uma outra regra que deve constar como obrigação da vendedora é o compromisso de comunicação pública, seja no seu site, seja nas suas páginas nas mídias sociais (Facebook, Instagram, Twitter, Linkedin, etc.) acerca da troca do fornecedor/prestador de serviços. Aliás, tal conduta denota boa-fé (como expressão do dever anexo de colaboração), bem como inteligência do vendedor, pois normalmente o pagamento do preço da cessão estará (ou deveria estar) condicionado às vendas feitas pelo adquirente.
A depender do quanto negociado entre as partes, pode-se estabelecer, com base nos documentos apresentados previamente pelo vendedor, uma cláusula estipulando um faturamento mensal médio da carteira de clientes, pois além de demonstrar a boa-fé objetiva do vendedor (como dever anexo de informação), indica a lucratividade do objeto da venda, a justificar o interesse pela sua aquisição.
Aliás, sob o ponto de vista de defesa dos interesses do comprador, é interessante estabelecer o faturamento mensal médio estimado como base de cálculo para a fixação do preço da venda, suas parcelas e demais condições de pagamento.
IV – REVISÃO DO CONTRATO.
Ainda que do contrato conste a lista completa da carteira ou o faturamento mensal médio estimado, pode acontecer que o cliente da lista não queira negócio com o adquirente ou então que o volume de faturamento seja, na realidade, inferior ao estimado. A onerosidade do contrato se torna excessiva ao adquirente.
Caso isso ocorra, nos termos dos arts. 317 e 479, ambos do Código Civil[4], urge a necessidade de regras contratuais de revisão do contrato, tanto possibilitando o abatimento de preço, como de nova forma de pagamento e condições.
Mesmo porque o art. 421-A, do Código Civil, inserido pela Lei nº 13.874/2019 (a denominada Declaração de Direitos de Liberdade Econômica) determina, por outras palavras, que compete somente às partes estabelecer cláusulas que permitam a revisão do contrato, a qual será excepcional e limitada e o respeito à alocação de riscos do negócio[5].
Como bem ensina Flávio Tartuce “A título de concreção, as partes de um contrato civil podem fixar previamente quais são os eventos que podem gerar imprevisibilidade, extraordinariedade ou onerosidade excessiva para um determinado negócio, para os fins de rever ou resolver o contrato, e nos termos do que consta dos arts. 317 e 478 da codificação privada”[6].
Ou seja, realizando uma interpretação sistemática, se não houver previsão contratual acerca das hipóteses claras de revisão, com alocação de riscos e fatos supervenientes que onerem demasiadamente o contrato, qualquer questionamento posterior a respeito poderá ficar prejudicado.
A possibilidade expressa de revisão contratual, seja pela denúncia de clientes e/ou do faturamento inferior ao estimado, além de ser de bom senso e lógica razoáveis, passou a ser imprescindível. Do contrário, caso seja recusada tal cláusula pelo vendedor, é para o adquirente repensar a respeito da aquisição e analisar se convém ou não assumir o risco.
Aliás, mesmo havendo cláusula a respeito, há casos em que o Judiciário tem que decidir controvérsias de tal natureza, merecendo transcrição da seguinte ementa de Acórdão do Tribunal de Justiça de São Paulo:
“CESSÃO DE CARTEIRA DE CLIENTES. Abatimento do preço proporcional ao número de clientes denunciantes do contrato após a cessão. Cálculos de abatimento não especificamente impugnados. Culpa da autora pela denúncia não demonstrada. Abatimento mantido. Sucumbência recíproca corretamente afastada. Honorários advocatícios sucumbenciais bem arbitrados. Recurso não provido.”[7]
No corpo do julgado acima transcrito, ficou decidido que “a retirada de alguns consumidores é fato corriqueiro nos contratos de cessão de carteira de clientes. Inclusive tal fato está devidamente previsto na cláusula 3.3 do contrato, sendo que, em referido dispositivo contratual, a ré-reconvinte expressamente assume o risco pela saída de parte dos clientes, já que se estipulou o abatimento proporcional do preço”.
É claro que não se pode ignorar também que, se a alocação de riscos gerar enriquecimento sem causa de uma parte frente a outra, onerosidade excessiva e afronta à função social do contrato, boa-fé objetiva ou outro preceito de ordem pública, é possível o controle judicial para tanto.
Nada impede, porém, que em casos de divergências insuperáveis entre as Partes sobre a revisão do contrato, a solução poderá ser por meio de mediação e/ou arbitragem, havendo previsão contratual ou compromisso arbitral posterior, a fim de resolver eventuais questões contratuais controvertidas entre as partes.
Por fim, como a transferência da carteira de clientes implica em transferência de dados, imprescindível a previsão de cláusulas de sigilo, confidencialidade, bem como sobre o correto tratamento de dados pessoais e responsabilidade a ser assumida pelas partes, seja individual ou em conjunto, em consonância com a Lei Geral de Proteção de Dados (Lei nº 13.709/18).
V – CONCLUSÃO.
Sem ter a pretensão de esgotar o tema, pois os contratos de cessão de carteira de clientes são paritários e livremente negociados entre as partes, o fato é que uma vez adotadas as cautelas acima descritas, sem prejuízo de outras cláusulas livremente negociadas pelas partes, conclui-se que o adquirente da clientela alheia ficará menos exposto a prejuízos e terá tranquilidade na sua atuação e expansão de sua atividade empresarial.
[1] Advogado em São Paulo/SP, sócio-proprietário do Escritório “von Ancken & Guidolin Advogados”. Pós-graduado em Direito Público pela EPM (Escola Paulista da Magistratura). Foi Assistente Jurídico do TJSP de 1999 a 2007. Foi Gerente Jurídico Cível do Moinho Pacífico Ind. E Com. Ltda. de 2013 a 2016 e “Legal Business Partner” de 2016 a 2021 da Bunge Alimentos S.A.
[2] STJ – 4ª Turma, Resp 936.741-GO, j. 03.11.2011.
[3] In “O Estado de S. Paulo”, edição nº 40.212, de 22.11.2003, pag. A2.
[4] Art. 317. Quando, por motivos imprevisíveis, sobrevier desproporção manifesta entre o valor da prestação devida e o do momento de sua execução, poderá o juiz corrigi-lo, a pedido da parte, de modo que assegure, quanto possível, o valor real da prestação.
Art. 479, CC. A resolução poderá ser evitada, oferecendo-se o réu a modificar equitativamente as condições do contrato.
[5] Art. 421-A. Os contratos civis e empresariais presumem-se paritários e simétricos até a presença de elementos concretos que justifiquem o afastamento dessa presunção, ressalvados os regimes jurídicos previstos em leis especiais, garantido também que: I – as partes negociantes poderão estabelecer parâmetros objetivos para a interpretação das cláusulas negociais e de seus pressupostos de revisão ou de resolução; II – a alocação de riscos definida pelas partes deve ser respeitada e observada; e III – a revisão contratual somente ocorrerá de maneira excepcional e limitada.
[6] In “A Lei da liberdade econômica (lei 13.874/19) e os seus principais impactos para o direito civil. Segunda parte”. Link: https://www.migalhas.com.br/depeso/313017/a–lei-da-liberdade-economica—lei-13-874-19–e-os-seus-principais-impactos-para-o-direito-civil–segunda-parte
[7] TJSP, 1ª Câm. Direito Empresarial, Apelação n. 1005582-04.2018.8.26.0011.